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Diário de Estrada - Bituca´s Trip Nº 8 - Três Pontas - Porto Alegre - Março - 2011

Movimento, gente nas ruas, música alta, som na praça, madrugada sem fim. A trupe volta à Travessia.

Uma das cenas mais marcantes do espetáculo "Ser Minas Tão Gerais", do grupo teatral Ponto de Partida, acontece quando um louco viajante cruza Milton Nascimento numa estrada. Incrédulo, faz várias vezes a mesma pergunta:

É ele mesmo?! É ele mesmo?!

Faltavam quinze minutos para as duas da madrugada. O bar se chama "Último Gole", ambiente que caberia perfeitamente num cenário do Ponto de Partida. Era terça-feira. 14 de março de 2011. Terceiro dia de ensaios para a estreia do novo show de Milton Nascimento.

Após entrar noite adentro ensaiando no Centro Cultural que leva seu nome, Milton foi com uma turma de aproximadamente trinta pessoas para o "Último Gole". Gesticulando de forma parecida com a personagem do "Ser Minas Tão Gerais", um homem se aproxima do cantor Bruno "Bad Boy" - que fumava um cigarro na frente do bar - e pergunta, apontando para Milton, sentado no meio de sua numerosa turma de amigos:

É ele mesmo?! É ele mesmo?!

A semelhança de comportamento entre o louco da peça e o de Três Pontas era inacreditável. Lúdicos, ambos falavam com o inconfundível sotaque mineiro.

Talvez um bom sinal ou talvez tudo isso não passasse também de outro sonho miltoniano. Assim como aquelas quase cinquenta pessoas - entre músicos, cantores, produtores e técnicos - que estavam em Três Pontas entre 11, 12, 13 e 14, dias antes da estreia do show "E a Gente Sonhando" em Porto Alegre, no dia 20 de março.

A casa de Milton, na Praça Travessia, foi o QG das operações. Ricardo Vogt (guitarrista de Esperanza Spalding), Darck Fonseca (roadie), e alguns funcionários da Nascimento, se misturaram aos músicos Lincoln e Ricardo Cheib, Kiko Continentino, Gastão Villeroy, Pedrinho do Cavaco e, é claro, o próprio Bituca. Todos hospedados na morada de Seu Zino e Dona Lília, pais de Milton.

Para dirigir o ato, foi escalado o premiado diretor Luís Antônio Pilar, que passou vários dias trabalhando com o jovem elenco trespontano antes da chegada de Milton e o resto da equipe. Pilar, era mais uma peça fundamental para fazer com que o sonho ganhasse vida.

Ensaios, projetos, gente na estrada

Transformar o disco "E a Gente Sonhando" num grande espetáculo levou muito tempo. Pois somente para finalizar as gravações deste último trabalho, Milton demorou cerca de quatro anos. E desde o primeiro momento ele nunca escondeu de ninguém que sua intenção sempre foi levar a turma toda para viajar o Brasil com este show.

O primeiro sinal de que esta turnê seria uma das mais movimentadas da carreira de Milton, aconteceu em setembro de 2010*, quando toda a turma que participou das gravações subiu pela primeira vez ao palco. Foi durante o II Festival Música do Mundo, em Três Pontas (MG). Naquela ocasião, a cidade de Bituca viveu dias de frenética agitação.

Antes de Pilar ser convidado para dirigir o espetáculo, Milton fez três shows em 2010 com o repertório do disco novo. Além de Três Pontas, a trupe havia passado por Juiz de Fora e Curitiba. Até que em novembro deste mesmo ano, a jornalista Maria Dolores - autora do livro "Travessia, a vida de Milton Nascimento" - desenvolveu um projeto para captação de recursos com o objetivo de levar o show "E a Gente Sonhando" para o máximo de lugares possíveis. A ideia de Dolores foi aprovada um mês depois e, juntamente com a Nascimento Música, formou-se a equipe que faria parte da nova turnê.

Em janeiro de 2011, Maria Dolores fechou um acordo para a estreia do novo espetáculo "E a Gente Sonhando" no dia 20 de março, no Teatro Bourbon, em Porto Alegre (RS). Foi então que se decidiu marcar novos ensaios em Três Pontas.

Nos dois primeiros dias, Bituca ficou de frente para os músicos. Era como se quisesse absorver cada situação in loco - do som ao movimento e, ao mesmo tempo, fazer com que a banda também compartilhasse o mesmo de sua parte, cara a cara.

Tudo em Milton se resume à capacidade de surpreender pela simplicidade, pelo coração musical intensamente brasileiro, e pelo eco barroco de um artista que, para chegar a todos, sempre busca inspiração nas "Geraes". Pois, como disse Fernanda Montenegro: "Quando estou em Minas, sinto que estou dentro do Brasil".

A partir disso, não é difícil chegar à conclusão de que a intenção de realizar os ensaios em Três Pontas tinha muito mais do que apenas uma questão logística. Para Milton, estar em Minas Gerais às vésperas de uma turnê complexa, como a programada para "E a Gente Sonhando", era também uma forma de receber a benção de sua terra mãe. E não custa repetir: o terreiro é ele.

No terceiro dia em Três Pontas, Pilar pediu ao roadie Darck Fonseca que posicionasse a cadeira de Milton de frente para a plateia. Este último ensaio antes da estreia seria feito numa só batida, pois Pilar queria acertar o tempo do show e fazer os últimos ajustes. Milton deu o aval, e o piloto do que seria o espetáculo foi assistido por uns poucos privilegiados que estavam no Centro Cultural Milton Nascimento naquela noite chuvosa de 14 de março.

Quem também esteve presente em Três Pontas foi o designer gráfico Milton Lima, um dos responsáveis pela identidade visual da turnê. Miltinho, como é conhecido, criou uma série de intervenções multimídia inovadoras para o projeto. E este trabalho de projeções foi inspirado no planejamento gráfico que o próprio designer criou para o disco "E a Gente Sonhando". A arte visual de Miltinho veio para fechar completamente a parceria com Keller Veiga, responsável por transformar o álbum de Bituca em cenário. A intenção é fazer com que o espectador tenha sensação de estar vivendo um sonho, literalmente.

Para fechar os trabalhos que geraram o formato definitivo do show, Milton e companhia se reuniram no botequim "Último Gole", onde a trupe se deparou com o "louco" de "Ser Minas Tão Gerais" - como foi citado no início do texto. Na ocasião, o clima era de muito entusiasmo. Assim como todos os envolvidos, Milton saiu de Três Pontas bastante confiante na estreia.

Casa cheia para os mineiros que invadiram os pampas

Porto Alegre, 20 de março de 2011. Os fãs de Milton na capital gaúcha compareceram em peso, a casa ficou lotada, todos os ingressos esgotados. Além das 55 pessoas da equipe de Bituca que viajaram ao Rio Grande do Sul, aproximadamente 20 profissionais da produção local se juntaram à trupe. Todos ficaram hospedados no Hotel Embaixador, na Rua Jerônimo Coelho, 354, bem no centro de Porto Alegre. A famosa Rua da Praia, assim como a Rua dos Andradas - onde viveu o poeta Mário Quintana - ficavam a poucos quarteirões do Embaixador.

A primeira parte da equipe - vinda do Rio de Janeiro - chegou na manhã do dia 19 de março. As turmas que vieram de Três Pontas e Belo Horizonte chegaram horas antes da apresentação. Na passagem de som, tudo começou a engrenar por volta do meio-dia. Devido à carga de trabalho por causa do elevado número de artistas em cima do palco, tudo só foi ficar impecavelmente pronto pouco antes do show. Os primeiros a chegar ao teatro para organizar tudo foram: o técnico de PA Marcus Gil, o engenheiro de som Ronaldo Lima, o roadie Darck Fonseca e o operador de luz Binho Schaefer.

Uma das novidades na trupe de Milton para reforçar o time na estreia foi a chegada de Ricardo "Tenente" Clementino, contratado para assumir a produção geral dos shows em que a Nascimento estiver envolvida. O apelido surgiu por volta de 1987, quando "Tenente" fazia a produção dos shows de Chico Buarque. Ao receber um papel impresso com a rotina de viagem, apontando desfechos importantes como passagem de som, saída de hotel e horário de vôo, o até hoje empresário de Chico, Vinicius França, após uma brincadeira do genial percussionista Mestre Marçal (que ainda não estava acostumado com o controle rígido das rotinas de produção), batizou Ricardo com o apelido.

"Tenente" já havia trabalhado com Milton entre 1991 e 1994, depois disso, trabalhou novamente com Chico, passando pelas equipes de Maria Bethânia, Roberto Carlos, Rappa, Cidade Negra e Loucomotivos. Apesar de toda essa estrada, Tenente faz questão de ressaltar que nada do que aconteceu em sua vida profissional seria possível sem os primeiros anos em que passou ao lado da família Nascimento.

Som, luzes, ação

Milton sempre gostou de fazer shows em Porto Alegre. Em 2008, a turnê do disco Novas Bossas, gravado com o Trio Jobim, também fez sua estreia no teatro Bourbon. "A cidade traz boas vibrações, o povo aqui é fora de série", diz Milton.

O show começa com sucessos de seu cancioneiro, como Encontros e Despedidas, Caxangá, Nos Bailes da Vida e Caçador de Mim. Depois, o cenário muda, Candido Portinari, representado pelas projeções, também comparece. Milton convocou, e Pilar infiltrou 29 músicos e cantores no universo do espetáculo "E a Gente Sonhando". Trazendo à tona, por exemplo, a órbita do timbre surrealista entoado por Milton num dueto com o cantor Paulo Francisco (Tutuca), ambos amparados pelo coro impactante de 19 pessoas em Amor do Céu, Amor do Mar, uma ode à Elis Regina.

Outra prova de como Pilar absorveu profundamente a música de Milton, foi bagunça e a alegria emocionante que moldaram a execução de Raras Maneiras. O jeito extrovertido e as histórias de Tunai contadas por Milton, foram de primordial inspiração para a cena do coro falando alto, rindo muito, e gesticulando sem parar diante do ataque do violão, da bateria e da voz de Milton na entrada contagiante da música. "The Voice!" - como diz Tunai quando fala de Bituca. Um som vibrante, frente a frente com a juventude na música e na amizade.

Força também é o motor de Comunhão, que se transformou num rock suficientemente pesado e cheio de suingue. O arranjo é de Marco Elizeo e grupo Anima Minas, que ganhou a pegada única de Kiko Continentino e Wilson Lopes, somadas ao envolvimento firme das baquetas de Lincoln e Ricardo Cheib e a marcação cerrada de Gastão Villeroy no contrabaixo.

Marco Elizeo e o grupo trespontano Anima Minas também assinam o arranjo de Anima, que novamente une o multifacetado e potente coro de 19 vozes. A parte em que as meninas fazem um trecho à capela, e o final da música - inovador, alegre e totalmente alto astral - com todos em uníssono batendo palmas, é de arrepiar.

Para a versão que Milton fez da música de Lulu Santos, Advinha o quê, Pilar construiu um ambiente que nos dá a sensação de estar ouvindo jazz numa espécie de cabaret. A dança quase sincronizada das moças e rapazes ao palco leva o espectador desejar imediatamente entrar no salão.

Vontade semelhante acontece em Espelho de Nós, música inédita de Milton e Fernando Brant, ponteada pelo toque do tambor de João Vitor. Liderado pela batida e pela tradição músico-antropológica dos irmãos Cheib. "Para provar mais uma vez que os tambores nunca se calaram". E assim como na canção título E a Gente Sonhando, Milton chama ao palco para cantar com ele o jovem Bruno Cabral, uma das vozes mais comentadas pela imprensa neste último trabalho de Milton.

Seguindo as palavras de Pilar, Pedrinho do Cavaco, o braço carioca do espetáculo, entrou no palco do teatro Bourbon tão à vontade que foi como se estivesse na quadra da Mangueira. Armado com seu cavaquinho, Pedrinho sacudiu o ambiente e, junto com Milton, transformou Circo Marimbondo num sambão que deixaria os grandes mestres pra lá de orgulhosos. O arranjo do baterista Lincoln Cheib para o número instrumental de Brasileirinho foi o clímax, seguido pela força da versão que Pedrinho fez para Todo Menino é Um Rei, canção-hino dos bambas Nelson Rufino e Zé Luiz, que virou clássico na voz de Roberto Ribeiro.

Eu Pescador, linda canção de Clayton Prosperi e Haroldo Jr., acompanhada pelo próprio Clayton ao piano, também emocionou o público. É mais uma música desconhecida garimpada por Milton que tem grandes chances de entrar para o hall das mais belas da MPB. A história do solitário pescador de sonhos que ainda guarda seu último beijo é tão forte na letra quanto na melodia.

Composta pela dupla Marco Elizeo e Heitor Branquinho, a balada pop Olhos do Mundo também agradou, e contou com a participação de Branquinho dividindo os vocais com Bituca e Marco Elizeo.

O guitarrista Ismael Tiso Jr - autor da música Do Samba, Do Jazz, Do menino e Do Bueiro - ao lado de Miller Sol, foi outro compositor trespontano que, além de ter uma música incluída no disco, canta com Milton na nova temporada. A canção de Ismael nos remete a um samba jazz da melhor qualidade, que traz também um pouco do mormaço de gafieira para dar um toque diferenciado aos shows.

Sempre atento ao que acontece de novo, Milton insiste em revelar novos talentos. Esta nova fase em sua carreira, projetada pela turnê "E a Gente Sonhando" é uma prova disso. Milton é assim desde seu primeiro disco, lançado em 1967, quando revelou poetas geniais como Fernando Brant e Márcio Borges. Depois, em 1972, no lançamento do incrível Clube da Esquina, Milton revelou uma geração inteira: como Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Ronaldo Bastos, Nelson Ângelo e Tavito. Continuou da mesma forma durante toda a carreira. Muito difícil apontar um disco de Milton que não tenha alguma novidade. Só para citar uma leva mais recente, no álbum Pietá (2002), as então revelações Maria Rita, Marina Machado e Simone Guimarães continuam firmes no cenário até hoje.

Desapegado dos holofotes que a fama produz, Milton Nascimento é um garimpeiro eterno. O ouro que seu olhar procura é nada mais que a novidade - seja ela em que área for - porque Milton jamais se fechou somente ao universo musical, sua vida é uma busca eterna pela amizade e pelas coisas que o ser humano é capaz de produzir. A razão de sua existência pode ser definida através de uma única frase: sede de viver. Tudo.

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Danilo Nuha
Assessoria de Comunicação
Nascimento Música
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Texto revisado e editado pelo jornalista Bruno Tasso - Fundador do