TURNÊS

TAMBORES DE MINAS 2000

O baticum ancestral e dolente dos tambores de Minas. De toques africanos e mouros, como os gozosos tambores baianos e os outros tantos que ecoam nos quatro cantos do país. Mas tangido nas entranhas opulentas da terra-mãe do Ciclo do Ouro. E propagado morraria afora, no sobe e desce ladeira das festas de rua do interior.

Com o título extraído de uma das faixas do disco Nascimento, lançado em maio último pela WEA, Tambores de Minas marca o encontro de dois patrimônios vivos da cultura mineira: Milton Nascimento e Gabriel Villela.

Originários das fronteiriças Três Pontas e Carmo do Rio Claro, ao Sul de MG, músico e encenador buscam no batuque primitivo, reproduzido nas ruas das Alterosas desde tempos imemoriais, a motivação para, em dois atos e vinte canções, penetrar no imaginário popular da terra em que foram forjados.
Pontuado pelas batidas secas de ritmos como o congo dos Congados, os Reisados, o catopê de Montes Claros, ou o cateretê dos barraqueiros do Rio Pirapora _ compilados e recriados pelo baterista Lincoln Cheib por ocasião da gravação de Nascimento _ , Tambores de Minas evoca as festas populares religiosas que celebram o ciclo de nascimento, vida, morte e ressureição de Jesus Cristo.

Um grande oratório interiorano serve de ambientação à releitura dos ritos cristãos pelo gênio barroco de Gabriel. Revestido com 700m de tecido, em sobretons de marfim e areia, com lambrequins adornando as bambolinas, o palco traz um tablado central, de 4m de diâmetro X 70cm de altura, em forma de caixa de folia. É deste gigantesco "altar" estilizado que se fará soar a voz deífica de Milton Nascimento.

Acompanhado por uma banda de velhos (e novos) confrades (Paulo Guimarães, Túlio Mourão, Robertinho Silva, Kiko Continentino, Lincoln Cheib e Marco Lobo), o "presidente-de-honra" do Clube da Esquina tem seu espírito generoso e gregário traduzido em cena por um elenco de nove acróbatas-bailarinos-cantores, que desempenham múltiplas funções: além de entoarem todos os arranjos corais, executam as breves peças coreográficas criadas por Vivien Buckup, lançam-se em acrobacias de solo e saltos mortais sob a liderança de Fábio Tavares, e, last but not least, incorporam e fazem rufar os tambores de Minas _ habilidade para a qual foram treinados pessoalmente por Robertinho Silva, em seu recém-inaugurado Centro de Percussão Alternativo, no bairro carioca do Recreio.

"Alertem todos alarmas
que o homem que eu era voltou"
("O que Foi Feito de Vera" - Milton Nascimento/ Márcio Borges)

A mais esplendorosa das centenárias festas religiosas de Minas, a procissão de Corpus Christi, serve de inspiração à estética solene e barroca do primeiro ato. É envolto em negro da cabeça aos pés que um ressurrecto Milton Nascimento entra em cena. Versão retinta do ostensório que abriga o corpo de Cristo (a hóstia consagrada) na festa que celebra sua ascensão aos céus, a veste urdida por Teca Ficinsky e Gabriel Villela para cobrir o corpo do monstro sagrado da música mineira, pontifica entre recriações vivas da obra do gênio maior da nossa arte barroca: os Profetas do estatuário de Aleijadinho, representados na indumentária dos nove integrantes do elenco.Camisa branca, gravata preta e faixa vermelha, sobre ternos de tecido rústico e estamparia tribal, vestem a banda no primeiro e no segundo atos, numa alusão ao traje utilizado pelo Rei do Congo, nas Congadas de Minas.

Abrindo com a emblemática O que Foi Feito de Vera, o repertório do primeiro ato passeia pela identidade emocional do cancioneiro miltoniano. Revive parcerias com Caetano Veloso(Paula e Bebeto) e Chico Buarque (Léo); reveste-se de religiosidade mineira (Calix Bento, de Tavinho Moura); sobrevoa momentos eternos da dupla Nascimento e Brant (Saudades dos Aviões da Panair e Ponta de Areia - esta última, em versão instrumental, com Milton pilotando uma sanfona de oito baixos); faz escalas em criações alheias (Cavaleiros do Céu, de Stan Jones, na versão de Haroldo Barbosa; Caçador de Mim, de Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá; e Corsário, de João Bosco e Aldir Blanc); e deságua na salina A Sede do Peixe (outra parceria com Márcio Borges) e na longínqua Para Lennon e Mc Cartney (de Lô Borges, com letra de Márcio e Brant).

"Senhora dona, eu lhe dou meu coração
Fazei de mim o seu altar, seu Louva-a-Deus"
("Louva-a-Deus" - Milton Nascimento/Fernando Brant)

O sincretismo da cultura africana com o catolicismo, presente nas festas populares brasileiras de cunho religioso, é tingido com cores (e tambores) fortes no segundo ato de Tambores de Minas. Depois de dirigir Maria Bethânia, uma divindade baiana da música, Gabriel Villela se inspira na Folia de Reis, a festa de celebração à visita dos Reis Magos ao recém-nascido Menino-Deus, na manjedoura, e mineiramente funda na cena um verdadeiro panteão de "orixás de Minas".

Resgatando a espontaneidade e o caráter aleatório inerentes à estética popular, o encenador de Guerra Santa e Rua da Amargura reúne retalhos de indumentárias e adereços de festas típicas dos mais remotos rincões do planeta (México, Indonésia, Malásia, Índia, China, Tibete, Japão) para recriar o imaginário popular mineiro. O rebuscado patchwork esculpido nos figurinos mistura o nobre e o pobre; flores de plástico com pedaços de cortina da Ópera de Pequim; raridades de antiquários com fitas, contas, búzios e espelhos.

MILTON NASCIMENTO
Em meio à profusão de cores irradiada pelas vestimentas dos rapazes do elenco, a entidade suprema do "terreiro" musical de Minas vem à luz sob um branco imaculado, em paramentos ricamente bordados a fios de prata.Quase que integralmente dedicado a Nascimento, o disco em que a arte universal de Milton retoma suas raízes mineiras, o ato final de Tambores de Minas é menos solene e mais efusivo que o primeiro. Bateria, percussões e as nove caixas de folia explodem agora em retumbância festiva. Em composições eminentemente percussivas, como o Louva-a-Deus de abertura, Janela para o Mundo (Milton e Brant) e Os Tambores de Minas (Milton e Márcio Borges), ou marcadamente melódicas como as antológicas San Vicente e Canções e Momentos (ambas de Milton e Brant). Rouxinol, o canto pungente com que Milton celebra seu vôo de Fênix; o lamento E Agora Rapaz?, de Dinho Canivana; Guardanapos de Papel, a exuberante louvação aos poetas feita pelo uruguaio Léo Masliah e vertida para o português por Carlos Sandroni; a interrogativa e telúrica Levantados do Chão, homenagem de Milton e Chico Buarque aos Sem Terra; e a autobiográfica Nos Bailes da Vida (outra vez Milton e Brant) completam o repertório deste espetáculo, que inaugura a parceria de dois mestres da cena mineira e, como não podia deixar de ser, guarda, ainda, inconfessáveis surpresas...
texto Angela de Almeida

"E batendo pelos que se foram
Ou batendo pelos que voltaram
Os tambores de Minas soarão
Seus tambores nunca se calaram"
"Os Tambores de Minas" - Milton Nascimento/Márcio Borges