NOTÍCIAS

DIÁRIO DE ESTRADA: BITUCA'S TRIP - Nº 5 - SETEMBRO DE 2010

Milton Nascimento escolheu o Festival Música do Mundo, em Três Pontas, para tocar pela primeira vez algumas músicas de seu mais novo disco "... E a Gente Sonhando". Confira mais detalhes desta história no texto do jornalista Danilo Nuha.

Aos bailes

Fazia muito calor em Três Pontas naquela tarde de três de setembro quando Milton Nascimento chegou à cidade. Faltava pouco mais de uma semana para o Festival Música do Mundo. E há muito tempo que a casa de Seu Zino e Dona Lília não hospedava tanta gente. Eram cerca de vinte pessoas entre músicos, técnicos, parentes e amigos de Milton que movimentavam os ares até então tranquilos da Praça Travessia.

Para facilitar a produção dos ensaios antes do show que seria realizado no dia 11 de setembro, a equipe ficou hospedada na casa onde Milton viveu dos oito aos vinte anos de idade. Ali, Bituca passou por acontecimentos que marcaram sua trajetória antes e depois da fama. As paredes da casa onde ele foi criado por seus pais, Zino e Lília, estão repletas de discos de ouro, troféus, medalhas e grande parte das conquistas de Milton em seus 55 anos de estrada.

Realizar a estreia do espetáculo "... E a Gente Sonhando" durante o segundo festival de Três Pontas, jamais teria sido possível se não fosse todo o trabalho realizado por Milton e sua Trupe nos oito dias que antecederam ao evento. Beth Campos, irmã de Milton, foi quem preparou a estrutura que acomodou o grupo. Ela se encarregou de fazer o cardápio e organizar os horários dentro da casa. João Vitor (Jovi), pela Nascimento Música, foi o responsável pelo cronograma de ensaios. O café da manhã, o almoço e o lanche eram coletivos, e chegavam a reunir quase 25 pessoas diariamente. Sem falar naqueles que sempre apareciam de surpresa.

Os ensaios não tinham muita variação de horário e quase sempre aconteciam na parte da tarde. Com exceção do último, que ocorreu pela manhã. O local escolhido foi o Centro Cultural Milton Nascimento, uma caminhada de quase dez minutos da Praça Travessia. Normalmente, o ensaio começava às cinco da tarde e terminava por volta de 23h. Depois, o grupo se dividia entre vários pontos da cidade, alguns continuavam tocando em casas de amigos de Três Pontas, enquanto outros iam bater ponto no Pizza Dog. Do outro lado, a "Turma da Pantufa", que vez ou outra gostava mesmo era de se recolher mais cedo.

Na cozinha, foi convocada a dupla de frente Cecília e Magda, com a missão de representar a culinária e a hospitalidade trespontana. Tradição realmente levada a sério, pois o cardápio de cada dia era infalível nas panelas de torresmo, nas travessas de tutu, nas feijoadas, nos rocamboles, nas lasanhas, nas massas e, como não poderia faltar numa casa mineira, o desfile sempre terminava com um doce de leite, uma goiabada, um figo em calda, ou um mousse maracujá.

Playstation, kimonos, violões e serenatas.

O entra e sai na casa do Seu Zino era constante. E as atividades eram variadas, cada um inventou seu próprio método para passar o tempo entre os ensaios. Era possível cruzar com gente andando pela casa nas mais diferentes situações 24 horas por dia. Darck Fonseca (roadie) levou o videogame e, durante a estadia na Praça Travessia, campeonatos e mais campeonatos de futebol eram travados na sala da casa por uma plateia cativa e atuante. Darck também era o parceiro de Lincoln Cheib nas aulas matinais de jiu-jitsu. O baterista levou a Três Pontas uma academia completa, e montou sua filial numa parte da casa que atraia cada vez mais curiosos. Lincoln arrumou até novos adeptos, um sobrinho de Milton de cinco anos de idade era um dos que levava com afinco as aulas no tatame colocado ao lado da oficina de Seu Zino.

Na ala noturna, o filme se espalhava. O pianista Kiko Continentino, por exemplo, era frequente nos encontros musicais roteirizados pelo também pianista Clayton Prosperi e pelo guitarrista Ismael Jr. Do mesmo lado, Wilson Lopes, Ricardo Cheib, Marcus Gil, Anderson Ratto e Ronaldo Lima eram do time composto pela boa conversa futebol clube. Frente a frente com a arte de atravessar madrugadas.

Um som

Os ensaios para o primeiro show da turnê "... E a Gente Sonhando" começaram com as cortinas do Centro Cultural fechadas. Milton fazia chegar o recado: terreiro grande. Wilson Lopes, Ismael Jr. e Marco Elizeo formavam o trio: guitarras e violões. Os irmãos Lincoln e Ricardo Cheib, no centro, eram do PB (Partido das Baquetas), seguido por João Vitor Campos, Iago Tiso e Fernando Marchetti. Casquídeo se comunicava no contrabaixo. Kiko Continentino na retaguarda, piano e teclado, tiro certo. A cobertura era direta: um coral de 23 vozes no palco. Exatamente como Milton havia planejado, numa estratégia que sofreu contestações de todas as formas na fase inicial, e que agora, ainda durante os ensaios em Três Pontas, surpreendia a crítica especializada. O jornal Folha de São Paulo do dia 8 de setembro fez uma resenha com o seguinte fechamento: "...E a Gente Sonhando" - Avaliação: Ótimo. Marcus Preto passou dois dias vendo os ensaios em Três Pontas, assinou e disse.

Keller Veiga fere rente, mão firme no cenário, surreal até o fio. A jornalista e biógrafa definitiva de Bituca, Maria Dolores, grávida de nove meses - literalmente tendo um filho ao mesmo tempo em que dava luz a um evento extremamente complexo - tinha a batuta da orquestra, missão dura por aqueles dias. Festival Música do Mundo, segunda edição, Três Pontas tatuado no circuito.

El Guajiro

Ventos de oito de setembro sopraram de Cuba ao sul de Minas naquela estrelada. Pablo Milanés, guerrilheiro das canções, abraça Milton. O encontro ocorreu na casa de Jaceline, irmã caçula de Bituca. E diante de poucas testemunhas, na boca da noite, Pablo pediu um violão. Yolanda chamou a voz. Ensaiaram um dueto, divertiram-se.

A primeira vez no mesmo palco foi durante a Eco-92, no Rio de Janeiro. Cancion por la unidad latino-americana. De lá pra cá, raízes cresceram. Havana e Três Pontas na mesma onda. Pablo e Milton cara a cara novamente, 11 de setembro de 2010. Juntos, arrepiaram a multidão quando, na faca da ventania, a banda de Pablo dividiu as honras com Milton em sua terra. O frio vinha cortante, e eles respondiam à altura. "Canção da América" e "Yolanda", Milton e Pablo, ao vivo em Três Pontas.

E eles voltariam a se encontrar outras duas vezes:

No dia seguinte ao festival, Pablo esteve com toda sua equipe novamente na casa da irmã de Milton. Naquela tarde, passou por lá também a gangue cubana de um dos filhos de Pablo, Fabien, que registrou toda cena de Três Pontas para um documentário.

Dias depois, Milton e Pablo ainda estiveram juntos no Rio de Janeiro, o encontro aconteceu num restaurante do Leblon. Era 16h de uma tarde chuvosa na zona sul. A sugestão foi de Chico Buarque, que chegou acompanhado da irmã, Ana de Holanda, e do empresário Vinicius França. E entre um prato e outro, a conversa se estendeu até perto das 19h. O único que bebeu foi Pablo (uísque e vinho), Chico, quando questionado, disse que parou de beber durante o dia. Milton não bebe há vinte anos.

Rio Vermelho

Três Pontas revive o woodstock, 1976 está de volta; o povo na estrada, MPB, luz, vento e rock and roll.
Tinta fresca num óleo sobre tela. A poeira que levantava do chão terminava o tom avermelhado do palco. Lá de cima, o frio parecia bem mais intenso, vento, muito vento. Milton chegou ao local do show no carro do cunhado, Gilberto Basílio, onde também estava o amigo fiel de Bituca em de Juiz de Fora (MG), Ricardo Campelo. E assim que eles estacionaram atrás do palco, o telão mostrou Wagner Tiso num dueto com a filha Índia. Tunai e Mallu Magalhães já haviam passado por ali. Na sequência, a noite ficaria por conta de Sá e Guarabyra; Celso Blues Boys, Jorge Vercillo e Pablo Milanés.

Geladeira

A situação estava difícil, tanto para os músicos, quanto para a plateia. E mesmo com as provações ocasionadas por causa do vento gelado, do frio e da poeira, a multidão segurou firme até às duas da manhã para ver Milton subir ao palco pela terceira vez naquela noite. Bituca abriu os trabalhos cantando "Há de Ser", com Jorge Vercillo. Depois, por volta de uma e meia da madrugada, fez duas músicas com Pablo Milanés: "Canção da América" e "Yolanda".

E quando o choque da frente fria já rasgava a madrugada, Milton assumiu de vez o ato. Banda posicionada para dar o tom em "Encontros e Despedidas", que teve a participação especial do pianista Ademir Fox. O set se abrira. E as estradas desejavam boas novas à concretização de toda a simbologia canalizada por Milton naqueles oito dias em Três Pontas. O show foi dividido entre sucessos e músicas do novo disco, 16 no total. E o pilar construído naquele sonho de 1976 por Milton, Chico, Clementina, Fafá, Francis Hime e Gonzaguinha: voltou. Desta vez, pra ficar.
Mas é só o começo.

Antes de pegar o trecho Minas-São Paulo para um show no Via Funchal, Milton previu: "Que dia é hoje ¿" - perguntou ele, ao sobrinho João Vitor. "É segunda-feira. 13 de setembro". Bituca ouve a resposta, ajeita os óculos escuros, olha pela janela, confere o relógio e, antes de aumentar o som do carro, devolve:

_ "Vixe, ainda tem muito chão pela frente".